domingo, 22 de maio de 2011

Eh, ôô, vida de gado

Vida de gado 
Zé Ramalho

Vocês que fazem parte dessa massa,
Que passa nos projetos, do futuro
É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais, do que receber.

E ter que demonstrar, sua coragem
A margem do que possa aparecer.
E ver que toda essa, engrenagem
Já sente a ferrugem, lhe comer.

Eh, ôô, vida de gado
Povo marcado, ê
Povo feliz

Eh, ôô, vida de gado
Povo marcado, ê
Povo feliz

Lá fora faz um tempo confortável
A vigilância cuida do normal
Os automóveis ouvem a notícia
Os homens a publicam no jornal
E correm através da madrugada
A única velhice que chegou
Demoram-se na beira da estrada
E passam a contar o que sobrou.

Eh, ôô, vida de gado
Povo marcado, ê
Povo feliz
Eh, ôô, vida de gado
Povo marcado, ê
Povo feliz

O povo, foge da ignorância
Apesar de viver tão perto dela

E sonham com melhores, tempos idos
Contemplam essa vida, numa cela
Esperam nova possibilidade
De verem esse mundo, se acabar
A arca de Noé, o dirigível
Não voam, nem se pode flutuar,
Não voam nem se pode flutuar,
Não voam nem se pode flutuar.



Zé Ramalho compôs “Admirável Gado Novo” numa referência ao livro de Aldous Huxley “Admirável Mundo Novo”. Escrito em 1932, descreve uma sociedade hipotética do futuro onde as pessoas são pré-condicionadas biologicamente e condicionadas psicologicamente a viverem em harmonia com as leis e ordens sociais sem possibilidade de contestação e senso crítico.

A expressão “massa” aparece como um forte indicador do anonimato, do tratamento não individual, essencialmente coletivo que o Capitalismo impõe aos indivíduos. Representa a necessidade da produtividade, bem como aquilo de pouco apuro, reflexão e qualidade, dada a falta de acesso da “massa” à educação e ao conhecimento de uma forma geral.
Essa condição massificada gera o problema de “dar muito mais do que receber”, característico do modo de produção capitalista que faz com que o trabalhador produza muito e receba pouco. No caso brasileiro, essa exploração se caracteriza desde o campo, com o trabalho semi-escravo, à cidade, com as altas cargas de trabalho e a constante supressão dos direitos trabalhistas. Assim, temos o quadro lamentável da nossa estrutura de classes. Apesar disso o autor enfatiza a coragem da “massa”, demonstrada “à margem do que possa parecer”, na manifestação de um povo que sofre com o sistema, mas não perde sua alegria.
Uma outra faceta digna de maior discussão é a metáfora do gado. Afinal, que semelhanças podemos depreender, pela ideologia do compositor, entre o “povo marcado” e o gado? De fato não haveria um ser melhor para representar a submissão e o conformismo do que o gado, que se deixa ordenhar, direcionar e guiar pelos seus “donos”. A condição de manipulação e exploração a que se submete este animal ocorre desde a vida até a morte, na extração da carne para a alimentação humana.
A condição da classe dominada é semelhante, pois o aumento do lucro dos donos dos meios de produção é proporcional a degradação do trabalhador que quanto mais trabalha menos recebe. Além disso, existem mecanismos de alienação e direcionamento das massas para que essa situação de exploração não seja questionada ou sequer entendida. Tais mecanismos se constituem como importante instrumento da ordem estabelecida e favorecem àqueles que detêm o poder, pois onde não há contestação ou cobrança, a facilidade para o auto-favorecimento, a corrupção e a impunidade é muito maior. A conseqüência disso é o agravamento da desigualdade social e de todos os demais problemas sociais.
Levando em conta o contexto histórico em que se insere a música servi- nos lembrar que o Brasil vivia o auge da Ditadura Militar, período negro da nossa história em que milhares de intelectuais e oposicionistas foram perseguidos, mortos e exilados. Apesar disso, no início da década de 70 o país estava em êxtase devido à conquista da Copa do Mundo, fato amplamente utilizado como propaganda do Governo Militar de Garrastazu Médici. Acresce-se a isso o “Milagre Econômico”, proporcionado pela invasão das multinacionais ao Brasil, e a forte propaganda do regime, levando a “massa” ao entorpecimento quase total.
É justamente aos donos do poder que encontramos fortes críticas, pois é para eles que “lá fora faz um tempo confortável”, procurando cuidar do normal e manter a “ordem” das coisas. Em relação a isso, o autor faz uma menção simbólica à perseguição aos opositores do regime e a forma como esse sistema era mantido com o “gado” à margem da realidade da situação. É utilizando a arma do simbolismo, da metáfora, da duplicidade de sentido que Zé Ramalho empreende sua crítica a esse estado de coisas e aos que mantêm essa situação. 
Essa condição de alienação e entorpecimento vivida pelo povo faz com que ele “contemple essa vida numa cela”. Essa prisão nada mais é do que a ignorância, o assujeitamento, o conformismo que impossibilitam a visão crítica e transformadora da sociedade. Preso ao sistema e dirigido por vontades alheias, exatamente como o rebanho no curral.
Enfim, é uma obra rica, de densidade social muito forte e que serve como alerta para que o “povo feliz” e “marcado” deixe de ter uma “vida de gado”.   
  

José Edson Ferreira Lima




4 comentários:

  1. Encontrei no sebo um livro sobre o Zé escrito pela Luciane Alves. É praticamente um livro sobre anarquismo, ela pega as letras dele e vai fazendo interpretações, também comenta as fazes pelas quais ele estava vivendo na época que compôs as letras. Gostei muito até chegar na parte dos discos voadores rs... mas recomendo a leitura, é legal e este texto me lembrou do livro.

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  2. ahhhhh, que legaal! Nossa, tem muita coisas nas letras das músicas do Zé!

    O livro éesse aqui: "Zé Ramalho: um Visionário no Século XX"?

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  3. nós e nossa ligação que vem do além!
    segunda feira eu usei essa musica numa prova de analise socio politica economica regional :O

    quando eu digo que a gente é irmã ninguém acredita!

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